Le biographe et la « grammaire de l’insulte » Par Jésus Santiago. Version française.  ←Pour consulter l’article, veuillez cliquer sur ce lien.

Parece-me importante esclarecer que a prática da escrita, inerente à ânsia de verdade do texto biográfico, tende a confluir, no caso específico da vida de Jacques Lacan, no que se pode designar a “gramática do insulto”. O trabalho da escrita do biógrafo pode resvalar numa política da letra, em que o sintoma do sujeito se torna matéria disponível para essa “gramática”. Nesse ponto de vista, o insulto adquire uma lógica própria que o discurso analítico não pode ignorar. É preciso, portanto, considerar o insulto uma operação discursiva de nomeação que não faz economia do rito institucional, em que ela se consuma. Não há ator social que não pretenda, na medida de seus limites, conferir consistência a seu mundo e tanto mais profundamente quanto seu ato de nomeação é reconhecido  ̶  isto é, autorizado. O biógrafo é, pois, uma das figuras de autoridade dessa operação de nomeação, cujo móvel é o uso da eficácia performativa do discurso. Na prática do texto biográfico, o poder das palavras confunde-se com o poder delegado ao porta-voz da produção escrita, poder inerentemente articulado ao ideal biográfico de dizer toda a verdade sobre a vida de alguém ilustre.

O insulto exibe, assim, uma intenção performativa, pois, como efeito de discurso, pertence à classe dos atos de instituição e de desinstituição, mais, ou menos, fundado socialmente, em que o biógrafo age no próprio nome, mais, ou menos, reconhecido socialmente, cuja finalidade objetiva explicitar que um sujeito possui certa propriedade, certa característica, o que, por sua vez, significa que o alvo de seu discurso se comporta, ao longo de sua vida, em conformidade com a essência social que lhe é, desse modo, imputada. Segundo propõe Jean-Claude Milner, de um modo bastante esclarecedor, em seu último livro, Clartés de tout: de Lacan à Marx, de Aristote à Mao, atribuir a alguém determinada propriedade é algo que se diz sempre na segunda pessoa, como no caso do nome judeu que surge, na boca do antissemita, como um insulto[1]. Diferentemente do que ocorre com os “nomes ordinários”, que se dizem sempre na terceira pessoa, o que se comprova pelo fato de se poderem pronominalizar,  ou seja, o sintagma nominal pode ser substituído por um pronome  ̶  por exemplo, comer o livro corresponde, corretamente, a comê-lo[2].

Por outro lado, há os “nomes próprios”, ou “nomes de batismo”, que são essenciais a cada ser falante, ainda que este receba seu nome, quando ainda não fala. Trata-se, portanto, de um nome que se diz na segunda pessoa e, somente em seguida, por efeito do processo temporal de formação do eu, se torna um nome que se diz na primeira pessoa.

Como eu disse antes, o insulto resulta de um efeito de nomeação, visto que se constitui um nome que também se diz na segunda pessoa, tal como o “nome próprio”. É preciso ressaltar, no entanto, que, ao contrário do “nome de batismo”, que busca nomear, no ser falante, o que lhe é singular e único, o insulto pretende destituir, do ser falante, o que ele tem de único.

Assim sendo, pode-se concluir, com Milner, que o insulto que se enuncia na narrativa do biógrafo é uma figura emblemática do que é um “antinome próprio”[3]. A astúcia discursiva do biógrafo consiste, portanto, em ser capaz de fraturar e fracionar o nome próprio e de, por essa via, desfigurá-lo em função das diversas expressões do que vem a ser um “antinome próprio”.



[1]MILNER, J.-C. Clartés de tout: de Lacan à Marx, de Aristote à Mao. Paris:Verdier, 2011.  p. 40.

[2]Ibid., p. 40

[3]Ibid., p. 41.

 

Comments are closed.